Ivan Luciano do Nascimento, advogado, Pós-graduado
Muito se tem discutido, pela doutrinária e jurisprudência, nas últimas duas décadas praticamente em torno da questio juris surgida com o advento da Lei 8.038/90. Esta norma legal prever, dentre outras questões, que os Recursos Especial e Extraordinário sejam processados somente com efeito devolutivo, possibilitando desta forma a execução provisória dos feitos pendentes de decisão final irrecorrível. Quanto ao Recurso Extraordinário o art. 637 do CPP já previa drástica medida.
No pertinente à matéria civil andou bem o legislador, mas não se pode dizer o mesmo quanto à esfera penal; naquela a reversibilidade em caso de reforma da sentença mostra-se possível, nesta, ao revés, não.
Posteriormente, a Lei 8.950 de 13 de dezembro de 1994, que revigorou os artigos 541 a 546 do Código de Processo Civil, trouxe nova regulamentação ao sistema recursal pátrio regendo a matéria pertinente aos recursos constitucionais no âmbito civil.
No que interessa ao presente estudo, andou mal o legislador em regular matéria Penal e Civil desse quilate em uma mesma Lei Especial, pois os princípios norteadores do Direito Civil são flagrantemente diferentes dos balizadores do Direito Penal.
Reza o inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Também dos artigos 105, 106, 107, 147, 164 e 171 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84 ) extrai-se a exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para se dar início à execução criminal.
Dessarte, o artigo 27, §2º, da Lei 8.038/90, deve ser interpretado sistemática e restritivamente frente à Constituição Federal, para tê-lo como alusivo, tão somente, ao processo civil. Aplicá-lo, in totum, ao processo penal, executando-se sentença penal condenatória sem devido trânsito em julgado, macula, data venia, frontalmente os ditames fundamentais da Carta Magna.
Não haveremos de olvidar o inarredável cunho definitivo da execução criminal, pois o Estado não dispõe de mecanismos, até por força da natureza das circunstâncias, para assegurar a restituição do status quo ante caso a decisão penal condenatória seja reformada.
No afã de lançar mão de solução eficaz contra a demora na prestação jurisdicional definitiva, o legislativo desprezou princípios constitucionais salutares norteadores do nosso sistema processual penal, tais como, o da presunção de inocência ou não-culpabilidade, do devido processo legal, contraditório, além das normas impeditivas da execução penal provisória inserta na Lei de Execução Penal, que exigem o trânsito em julgado como requisito indispensável de procedibilidade ao início da execução penal, princípios estes que nem os defensores da execução provisórios deixam de avalizar.
Segundo Barros Vidal[i] há um flagrante conflito entre Lei 8.038/90 e a Constituição e a LEP:
Vislumbra-se pois o conflito entre os dispositivos do art. 105 da LEP e art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90.
Mera antinomia de 1º grau, resolve-se o conflito com a aplicação dos princípios de direito penal estabelecidos na CF.
Culpa reconhecida por decisão judicial e trânsito em julgado são requisitos elementares e indispensáveis para a limitação da liberdade do indivíduo com fundamento na violação da lei penal (o que não se confunde com a prisão cautelar).
Esta é a conseqüência material do princípio constitucional de presunção de inocência estabelecido no art. 5º, inc. LVII, da Carta Magna.
Informado o conflito de normas já traçado pelo princípio constitucional ora analisado, a conseqüência inarredável é a aplicação do art. 105 da LEP em toda a sua integridade, com prejuízo da restrição civilista inserida no § 2º do art. 27 da Lei 8.038/90 ao prever mero efeito devolutivo aos recursos constitucionais.[ii] (grifo nosso)
Inobstante inúmeras decisões judiciais até então apontarem a viabilidade da antecipação da execução da pena imposta em sentença pendente de recurso, especial ou extraordinário e seus incidentes, nossa Suprema Corte decidiu, por via indireta, pela inconstitucionalidade da execução provisória:
HABEAS CORPUS. DECISÃO CONDENATÓRIA QUE DETERMINOU A EXPEDIÇÃO IMEDIATA DO MANDADO DE PRISÃO. RÉU QUE RESPONDEU AO PROCESSO EM LIBERDADE.
Julgamento não unânime, que pode estar sujeito à embargos infringentes, os quais impedem a expedição imediata do mandado de prisão. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Hipótese em que o mandado de prisão só poderá ser expedido após o trânsito em julgado da condenação. Habeas corpus deferido.[iii]
No mesmo diapasão, o que sinaliza a mudança de posicionamento do STF quanto à matéria, o Ministro Ricardo Lewndowski, em decisão monocrática proferida nos autos do HC/97560-STF, concedeu medida liminar para ilidir o prosseguimento da execução provisória em ação penal pendente de recurso, ao argumento de que “[...] os preceitos veiculados pela Lei de Execuções Penais (arts. 105, 147 e 164) estão em consonância com o disposto pela Constituição Federal, em especial no seu art. 5º, LVII, além de se sobreporem, temporalmente e materialmente, ao estabelecido no art. 637 do Código de Processo Penal, que prescreve que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo.”[iv]
No mesmo sentido é o entendimento da sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgado proferido nos seguintes termos:
EMENTA - PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS . CONDENAÇÃO. RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. EFEITO SUSPENSIVO. INEXISTÊNCIA. CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DE PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. ILEGALIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. Não subsiste o art. 637, do Código de Processo Penal, diante dos princípios constitucionais do estado de inocência e devido processo legal, pois não recepcionado pela Constituição da República; 2. O art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90 estabelece regras gerais sobre os recursos especial e extraordinário, e, frente aos princípios constitucionais do estado de inocência e devido processo legal e à Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), não abarca esses recursos quando encerrarem matéria penal cujo conteúdo tenda a afastar a pena imposta; 3. Inteligência dos princípios da máxima efetividade e da interpretação conforme a constituição, cânones da hermenêutica constitucional; 4. Tanto o art 669 do Código de Processo Penal, quanto a Lei 7.210/84 exigem o trânsito em julgado de decisão que aplica pena restritiva de direitos para a execução da reprimenda; 5. Ordem concedida. [v]
O Direito Penal brasileiro está calcado em princípios delineadores básicos, ora previsto na própria lei e na Constituição ora incorporados ao direito por construção doutrinária e jurisprudencial, dentre os mais importantes (se é que podemos graduá-los nestes termos) o da reserva legal, que preceitua que o Estado não só detêm o poder-direito mas o poder-dever de punir o infrator das normas legais, contudo, observando as regras do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, corolário do direito ao acesso à justiça.
De fato é através do processo penal que se busca proteger o interesse social em uma convivência pacífica e harmônica entre as pessoas (finalidade mediata), objetivo este alcançado através da aplicação das sanções prevista para os casos de violação da norma legal (finalidade imediata), mas não se pode fazê-lo ao arrepio da própria lei.
O princípio da presunção de inocência tem estreita relação com o princípio da reserva legal, aquele vem insculpido no art. 5º, inciso LVII, da CF/88 que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A Declaração do Direito do Homem e do Cidadão de 1789, em seu art. 9º preceituava que toda pessoa se presume inocente até que seja declarada culpada. No mesmo norte fixou tal reserva a Declaração Americana de Direitos e Deveres de 1948 em seu art. 26, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, em seu art. 11.
A regra do princípio da presunção da inocência foi e vem sendo altamente questionado, pois sua aplicação integral, segundo alguns doutrinadores, inviabilizaria qualquer medida coercitiva por parte do Estado, tais como: prisão provisória ou até mesmo a ultimação do processo, o que nos parece sem razão de ser, pois nesses casos prioriza-se o interesse estatal.
Para Jimenez, o que existe é uma “tendência à presunção de inocência”, ou seja, “um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado”[vi].
Segundo Mirabete, até mesmo a Constituição da República não veio a prever a presunção da inocência, mas tão somente declarar que para a obtenção de um juízo final de culpabilidade exige-se o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5 º, LVII).[vii]
No entanto, a “presunção de inocência” ou “estado de inocência” não obsta a aplicação de medidas coercitivas prisionais cautelares, desde que a presunção da culpabilidade, autorizadora da deflagração da ação penal, esteja corroborada com elementos probatórios bastantes para tal desiderato. Pode-se assim, observadas as normas legais pertinentes e preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos, impor-se a prisão provisória decorrente de flagrante, pronúncia, preventiva, temporária, etc.
Fora a antinomia vernacular, o fato é que uma pessoa somente pode ser considerada culpada após o devido processamento da ação penal competente, e mais, exauridas todas as vias recursais.
Destarte, com substrato nas melhores regras hermenêuticas em que se pautam a doutrina e a jurisprudência na solução do conflito de normas penal no tempo e no espaço, há que se entender não recepcionada pela Carta Magna ou inconstitucional qualquer norma legal que vise antecipar os efeitos da sentença condenatória pendente de recurso, ou seja, sem o devido trânsito em julgado, forte no inarredável princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade.
[i] Cf. BARROS VIDAL, Luís Fernando C. de. Efeitos suspensivos dos recursos constitucionais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 1, ano 3, jul.-set., 1993, RT: São Paulo. p. 180-181.
[ii] BARROS VIDAL, op. cit., p. 181.
[iii] STF-HABEAS CORPUS Nº 69535-3 MINAS GERAIS. Pacte.: Enoch Alves Ribeiro. Coator: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, disponível em: www.stf.gov.br.
[iv] HC/97560-STF. Rel. Ministro Ricardo Lewndowski, disponível em: www.stf.gov.br.
[v] HABEAS CORPUS Nº 25.310 - RS (2002/0148136-0) Rel. Min. Paulo Medina. DJ. 26/10/2004.
[vi] JIMENEZ, Hermando Londoño, apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 42.
[vii] MIRABETE, op. cit., p. 42.
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