Com o atual constitucionalismo hoje existente, é indiscutível que o direito assimilou uma enorme carga de valores, principalmente morais, assumindo neste contexto papel importante os Princípios Constitucionais, que inevitavelmente incidem sobre toda a ordem jurídica, tanto em sua compreensão como em sua aplicação. Na visão pós-moderna do Direito, concebida sob o cânone democrático que estrutura o Estado atual, onde há um momento de ruptura paradigmática do monopólio estatal, não se admite mais o isolamento do Direito face à sociedade, suas necessidades e valores carentes de tutela, pois ele começa a absorver valores sociais e fundamentais e em torno deles vai se estruturando, vislumbramos uma saída da redoma inatingível em que permanecera por décadas, imbuindo-se com maior absorção nos ideais de justiça e a certeza de que somente existe para realizar um bem maior, que é servir a proteção de todo um corpo social.
Nesta linha de raciocínio, nosso propósito é o de rediscutir alguns aspectos relevantes e sempre atuais das constantes reformas constitucionais dos direitos fundamentais sociais, acreditando que é possível a evolução do processo rumo a efetividade, buscando estruturá-lo como mecanismo hábil a realização da justiça, que pode se dar por intermédio da revisão de conceitos e normas a partir dos referenciais extraídos dos valores constitucionalmente amparados, voltados à proteção e realização das potencialidades humanas, oferecendo a ciência hermenêutica uma via ampla para a promoção dos fins sociais almejados.
Desta forma, ganha força o papel dos intérpretes e aplicadores do Direito, que na sua função, constroem, a partir do ensejo dos textos legais com os valores que orientam todo o ordenamento jurídico, os comandos normativos. Para Osmar Fernando Medeiros[1], há muito tempo o magistrado deixou de ser mero aplicador de leis, pois constituição de 1988 “permite uma atuação mais política ao Judiciário, fornecendo-lhe os meios de compatibilização do Direito com a realidade social, o que permite, se observando com a devida cautela e interesse, a emergência devidamente reconhecida pela realidade constitucional”, pois a interpretação opera a mediação entre o caráter geral e o texto normativo e sua aplicação particular, operando sua inserção na vida.
Então, neste contexto, insere-se a interpretação dos direitos fundamentais. Os métodos interpretativos tradicionais (gramatical, lógico, literal, entre outros), considerados isoladamente, são inadequados à interpretação dos direitos fundamentais, que pressupõe uma interpretação inclusive emancipatória: os direitos fundamentais que privilegiam o cidadão incluindo em uma sociedade democrática e plurarista. A interpretação dos direitos fundamentais deve ter por pressuposto a máxima eficácia das disposições constitucionais, contribuindo decisivamente para criar a “vontade da constituição” tão ausente em nossa sociedade, o que permite que se cometam absurdos contra a mesma.[2]
Os direitos fundamentais, num sistema de controle judicial de constitucionalidade das leis, necessariamente estabelecem um confronto entre o juiz e o legislador. É certo que a superação das leis pelos direitos fundamentais obriga o juiz a se pautar por critérios objetivadores. Entretanto tais critérios não são capazes de permitir uma segurança absoluta na delimitação dos conteúdos que devem subordinar a lei.
ALEXY busca distinguir uma concepção moral individual ou particular diante de uma concepção moral pública, afirmando que esta última envolve uma representação comum sobre as condições justas de cooperação social em um mundo caracterizado pelo pluralismo. Para tanto, fundando-se em RAWLS, conclui que o conteúdo dos direitos fundamentais está no que cidadãos racionais com concepções pessoais distintas consideram como condições de cooperação social justas “tão importantes” (consenso) que não podem ser deixadas nas mãos do legislador.[3]
Ao afirmar a inadequação da lei a um direito fundamental, o juiz deve argumentar que a lei interfere sobre o bem que foi excluído da sua esfera de disposição. Não se trata simplesmente de opor o direito fundamental à lei, mas sim demonstrar, mediante adequada argumentação, que a lei se choca com o direito fundamental. Portanto, a afirmação do direito fundamental diante da lei deve significar oposição entre uma argumentação jurisdicional em prol da sociedade e a decisão tomada pelo legislativo. Trata-se, como diz ALEXY, de uma representação argumentativa a cargo da jurisdição em face de uma representação concretizada pela lei.
Todavia, o controle judicial de constitucionalidade da lei se justifica quando juízes demonstram publicamente que seus julgamentos estão amparados em argumentos que são reconhecidos como bons argumentos, ou menos argumentos plausíveis, por todas aquelas pessoas racionais que aceitam a Constituição.
O controle da lei a partir dos direitos fundamentais não significa que a jurisdição tem o poder de dizer que o legislador deve fazer, mas sim que a jurisdição tem o poder-dever de argumentar e convencer a sociedade quando surge a divergência sobre se a decisão do legislador se choca com um direito fundamental.
O controle jurisdicional da lei e dos procedimentos judiciais se mostra plenamente legítimo quando se percebe que a jurisdição possui o dever de lançar mão de uma argumentação racional capaz de convencer a sociedade no caso em que aparece a desconfiança de que a decisão do parlamento toma assalto a substância identificada em um direito fundamental[4].
Deste modo, não há como ver o processo apenas como uma relação jurídica processual. A relação jurídica processual, nos moldes pensados pela doutrina clássica, nada diz sobre o conteúdo do processo. Tal relação jurídica processual pode servir a qualquer Estado e a qualquer fim. Daí sua evidente adequação quando se pretende explicar o processo diante do Estado Constitucional e dos direitos fundamentais.
O processo é um procedimento, no sentido de instrumento, módulo legal ou conduto com o qual pretende se alcançar um fim, legitimar uma atividade e viabilizar uma atuação. O processo é um instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da constituição. É o módulo legal que legitima a atividade jurisdicional, e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É o conduto que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário, e, além disto, é o conduto para a participação popular no poder de reivindicação de concretização e de proteção dos direitos fundamentais. Por tudo isso o procedimento tem que ser, em si mesmo, legítimo, isto é, capaz de atender às situações substanciais carentes de tutela e estar de pleno acordo, em seus cortes quanto à discussão do direito material, com os direitos fundamentais.[5]
Tem-se, assim, que, ao mesmo tempo em que o processo serve para materializar as promessas constitucionais, por elas deve ser impregnado, amoldando-se tanto na sua forma quanto em seu conteúdo, aos parâmetros estipulados na Carta Magna para o eficaz exercício da função jurisdicional, pois todo o sistema de proteção consagrado na vasta pauta de direitos fundamentais inscrita na Constituição, depende de medidas corretas para ser efetivado.
É evidente que o procedimento, quando compreendido nessa dimensão, é atrelado a valores que lhe dão conteúdo, permitindo a identificação das suas finalidades. Isso pela razão óbvia de que o procedimento, À luz da teoria processual que aqui interessa, não pode ser compreendido de forma neutra e indiferente aos direitos fundamentais e aos valores do Estado constitucional. Nesse momento não há razão para tentar penetrar na essência de outro processo que não aquele que importa à jurisdição do Estado contemporâneo.
A busca pela materialização do plano normativo constitucional é tarefa da qual não se podem desincumbir juristas, sendo certo que é dever de todos (e não só dos operadores do Direito) cuidar para que a Constituição não reste esvaziada de sentido em razão de sua pouca ou nenhuma aplicação. Ao se realizar o processo hermenêutico, atribuindo sentidos aos textos legais é preciso ter em mira o horizonte por aquele fornecido, especialmente no que lhe compõe o núcleo essencial: os direitos fundamentais, que se identificam com os Princípios Gerais de Direito.
Este exercício hermenêutico, que busca permanentemente a construção de normas jurídicas que se adequem e permitam a expressão dos valores constitucionalmente amparados, em um permanente e rico diálogo entre o plano normativo maior e as regras abstraídas do direito infraconstitucional, caracteriza a jurisdição constitucional, a qual, percebe-se desta colocação, é sempre realizada. Em outras palavras, toda vez que se interpreta um texto legal deve-se fazê-lo tendo em mira o horizonte constitucional, buscando-se aplicar e conferir efetividade aos valores que lhe confere sustentação, o que não encontra ressalva na esfera processual.
Tudo isto leva a certeza de que a releitura dos conceitos e regras que compõem o processo tradicional à luz da pauto axiológica constitucionalmente consagrada viabiliza a construção de um novo processo, constitucionalizado e capacitado a oferecer respostas aos anseios sociais e conferir efetividade aos direitos mais nobres do ser humano.
Por derradeiro é importante mensurar que ao realizar, dentro do processo, uma hermenêutica preocupada em conferir resultados aos valores constitucionais que emanam do modelo de proteção a dignidade humana, estão os atores processuais conformando este ramo do direito ao plano normativo constitucional, aferindo validade de suas normas à luz dos novos paradigmas oferecidos. Este trabalho de reelaboração conceitual e normativa do Processo, a partir dos parâmetros constitucionais que fixam o modelo humanista e solidarista próprio do Estado Democrático, representa o exercício de uma jurisdição constitucional voltada a tornar realidade as promessas abstraídas do texto maior.
Assim sendo, exalta-se a função dos julgadores que, a todo momento, se vêem vinculados à verificação da constitucionalidade das normas infraconstitucionais em geral e, em especial, daquelas que possuam natureza processual, buscando, através de uma atuação inteligente e construtiva, adequá-las à nova realidade trazida pelo projeto de estado erigido a partir de 1988. No momento em que se encontram incumbidos do exercício da função jurisdicional, os juízes são a própria corporificação do estado, suportando em seus ombros o enorme fardo que representa ter de lidar com o incomensurável poder àquele pertencente. Esta realidade torna premente a concepção de um sistema de freios capaz de limitar tamanha força, consistindo o processo eficiente mecanismo de controle para a atuação estatal.
Enfim, é importante notar que as regras atualmente existentes no Direito Processual reconhecem aos juízes o dever de assumir uma postura ativa na condução dos procedimentos, vêm na esteira das inovações concebidas através de mecanismos interpretativos, que buscam materializar princípios como o do acesso à justiça ou da efetividade do processo, direitos fundamentais decorrentes do valor da dignidade humana, permitindo a eficaz expressão de seus conteúdos axiológicos e a realização do processo justo.
REFERÊNCIAS
DOBROWOLSKI, Silvio (org.). A Constitucionalização no mundo globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000, p. 94.
MANINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do estado constitucional.Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 347, setembro/2006, pág. 41
SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais – proteção e restrições. Ed. Livraria do Advogado, 2001, p. 117.
[1] DOBROWOLSKI, Silvio (org.). A Constitucionalização no mundo globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000, p. 94.
[2] SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais – proteção e restrições. Ed. Livraria do Advogado, 2001, p. 117.
[3] MANINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do estado constitucional. Revista Jurídica,Porto Alegre, nº 347, setembro/2006, pág. 41.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. cit., p. 42.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. Cit., p. 43.
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