quarta-feira, 1 de junho de 2011

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA, Luciane Dalle Grave

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, XXXVI, nos dá a garantia de que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim como também dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil em seu art. 6º, § 3º: A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitado o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso.

Baseado nesta garantia constitucional o que se discute atualmente é a possibilidade de alargamento ou ampliação das hipóteses de relativização da coisa julgada frente a impossibilidade constitucional que garante a não prejudicialidade da coisa julgada. O presente trabalho tem, por conseguinte a justificativa de buscar suporte teórico-jurídico para uma melhor compreensão das possibilidades de modificação da sentença transitada em julgado, alcançando-se assim um processo mais justo para as partes, sem afetar a segurança jurídica.

A problemática está ligada ao conceito absoluto da imutabilidade da coisa julgada. E em como poderá ser elaborado um novo conceito diante dos problemas práticos que podem ser gerados por sentenças injustas ou contrárias ao ordenamento jurídico que tenham alcançado a autoridade da coisa julgada, surgindo a indagação: deve-se admitir ou não a relativização da coisa julgada?

Outra questão problema que surge e que não pode deixar de ser enfrentado no presente trabalho é o da instabilidade que a relativização da coisa julgada pode gerar. O ordenamento jurídico vigente que permitirá tal ampliação poderá gerar uma insegurança prejudicial a pacificação social, que é, afinal de contas, o escopo maior da jurisdição.

De outro vértice, deve-se mencionar que entre os mais graves casos de sentenças erradas estão, indubitavelmente, aquelas em que o conteúdo da sentença ofende a Constituição da República. Isto porque, a inconstitucionalidade é o mais grave vício que pode acometer o ato jurídico, merecendo estas “sentenças inconstitucionais” tratamento em separado, pois no entender de muitos juristas nunca terão força de coisa julgada e poderão em qualquer tempo ser desconstituídas no seu âmago mais consistente que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega da Justiça.

Com a conclusão do trabalho, pretende-se destacar a corrente doutrinária que defende a carga imperativa da coisa julgada e a corrente que por sua vez a repudia, aprimorando-se os pensamentos com o fim de concluir sobre a possibilidade de uma flexibilização da coisa julgada, em sendo possível, em quais circunstâncias poderá ser invocada para se evitar injustiças e fraudes à Constituição.

2 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA


A flexibilização da coisa julgada tem recebido destaques na moderna doutrina processualista brasileira, através de sua relativização. Vários autores já se pronunciaram sobre o assunto e, como todo e qualquer tema jurídico, há correntes doutrinárias divergentes sobre o assunto. Existe a visão tradicionalista que está ligada ao conceito absoluto da imutabilidade da coisa julgada em qualquer hipótese e que está sendo questionada atualmente. Ao lado deste entendimento, já existem decisões, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, bem como do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que admitem a rediscussão da matéria que já estava coberta pela autoridade da coisa julgada material.

Inicialmente, antes de aprofundar sobre a controvérsia existente entre os operadores da ciência mostra-se necessário apontar para a imprecisão terminológica no trato do assunto. É que não faz sentido que se pretenda ‘relativisar’ o que já é relativo. Quando se entende que algo deve ser relativizado por certo este algo deverá se mostrar absoluto.

Ocorre que o instituto da coisa julgada material, segundo os contornos que lhe foram traçados pelo legislador infraconstitucional, está longe de ser algo absoluto, bastando apenas atentar para os limites objetivos (art. 468 c.c. art. 460, arts. 469 e 474 do CPC) e subjetivos (art. 472), bem como para as hipóteses já previstas para a desconstituição das sentenças definitivas de mérito (ar. 485).

Diante disso, ao que se parece, e se discute em doutrina é a ampliação ou alargamento das hipóteses de relativização da coisa julgada. Sob outro aspecto, também ligado a imprecisão terminológica dispensada pela doutrina, o que se discute não é a desconsideração da coisa julgada, mas a desconsideração da sentença propriamente dita.[1]

Em termos gerais, no entender de DINAMARCO pode-se dizer que a coisa julgada representa ‘o mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais’[2]. Em obra recente, o mesmo jurista ensina que esgotadas as possibilidades de impugnação de uma sentença a mesma se torna estável, imune a ataques posteriores, implantando-se, assim, uma situação de segurança entre as partes. E conclui: “essa estabilidade e imunização, quando encarada em sentido amplo, chama-se coisa julgada e atinge, conforme o caso, somente a sentença como ato processual ou ela própria e também os seus efeitos”.[3]

Diante dos problemas práticos que podem ser gerados por sentenças injustas ou contrárias ao ordenamento jurídico que tenham alcançado a autoridade de coisa julgada surge então a indagação: deve-se admitir ou não a relativização da coisa julgada? Argumentos de peso existem em todos os sentidos, podendo ser destacados os juristas que a admitem - Cândido Rangel Dinamarco (Revista de Processo, 109/9-36), Francisco Wildo Lacerda Dantas (Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, 28/33-43), André Luiz Santa Cruz Ramos (Revista Dialética de Direito Processual, 24/9-21) e Alexandre Freitas Câmara (Coisa julgada inconstitucional, América Jurídica, 2005, 5ª ed., p. 127/154) - evocam: a) o princípio da proporcionalidade: a imutabilidade da coisa julgada é apenas um dentre os numerosos princípios adotados pela Constituição da República; b) o princípio da instrumentalidade das formas: o processo não pode perpetuar injustiças e sentenças inconstitucionais; c) a supremacia dos princípios da moralidade e da legalidade sobre outros princípios, inclusive o da coisa julgada; d) a proteção do Estado Democrático de Direito e outros valores que dignificam a cidadania; e) que a segurança jurídica imposta pela coisa julgada não deve imperar quando o ato que a gerou afronta a realidade dos fatos e o ideal de justiça; f) o imperativo constitucional do justo valor nas ações de desapropriação, que veda tanto o pagamento aquém do valor real - transgredindo o direito de propriedade e a sua reposição patrimonial - quanto além, lesando o Estado e a moralidade administrativa; g) que não podem prevalecer decisões fundadas em fraude ou erro grosseiro, porque contaminam de modo absoluto o resultado do processo; h) que, em sendo valor infraconstitucional de natureza processual, a segurança jurídica não se sobrepõe aos princípios constitucionais.

Por outro lado, citam-se os autores que dela divergem - Nelson Nery Junior (Revista Forense, 375/141-159), José Carlos Barbosa Moreira (Revista Forense, 377/43-61), Sérgio Nojiri (Revista de Processo, 123/123-141), Luiz Guilherme Marinoni (Revista dos Tribunais, 830/55-71), dentre outros - argumentam que: a) a coisa julgada é dogma de direito processual e garantia constitucional (CF, art. 5º, XXXVI); b) se a sentença transitada em julgado puder ser revista a qualquer tempo, os conflitos sociais não se estabilizarão jamais; perpetuando-se ad infinitum restaria comprometida a segurança jurídica; c) se for possível anular sentença transitada em julgado, também o será a segunda decisão, anulatória da primeira, e assim sucessivamente; d) a coisa julgada é um dos elementos de existência do Estado Democrático de Direito e base fundamental da República; portanto, por se tratar de cláusula pétrea, não pode sofrer alteração legislativa, sequer ser modificada ou abolida por decisão judicial posterior; e) a impugnabilidade perpétua de sentenças ou acórdãos tidos por inconstitucionais ofende o devido processo legal; f) não há como fixar critérios objetivos que definam quais julgados se submetem à relativização, pois é subjetivo e incerto o conceito de Justiça; g) a estabilidade das decisões representada pela coisa julgada é essencial para que a sociedade confie na seriedade e eficiência do Poder Judiciário; h) nos casos em que o acórdão do tribunal superior substituir a decisão de primeiro grau, o pedido de relativização teria que se dirigir ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça - como se dá com a rescisória - criando hipótese de competência originária de um desses tribunais em ferimento ao rol taxativo de repartição de competências estabelecido na Constituição Federal (arts. 102, I, e 105, I), que não comportam ampliação, nem mesmo por analogia.



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